O Corpo na proposta da brincadeira

 
o CEMEI, havia tanto momentos em que as crianças brincavam sem intervenção da professora, quanto momentos de brincadeiras
dirigidas. Assim, com o decorrer das observações, na busca de interpretar o que elas significavam, começamos a indagar: em quais

momentos elas aconteciam? O que elas permitiam ao corpo e movimento das crianças? Em uma simples descrição das situações

diríamos que a professora realizava algumas brincadeiras com as crianças, e estas aconteciam regularmente.

No entanto, ao partirmos da descrição densa, com intuito de entender o significado das ações, percebemos que as brincadeiras aconteciam em momentos específicos: sempre antes do horário

do parque, assim como as músicas, que sempre eram lembradas pela professora no momento que as crianças esperavam a outra turma terminar a refeição para entrarem no refeitório. Desta forma,

observamos que a realização de brincadeiras e músicas também era uma maneira de controlar os corpos das crianças:

Faltam apenas 5 minutos para o parque, mas a professora vendo que as crianças não param sentadas, diz que enquanto não chega a “hora do parque” vai fazer a brincadeira do morto vivo, pede para que todas fiquem em pé e as que não querem brincar, fiquem sentadas. Começa a brincadeira: morto - todas abaixam, vivo- todas

levantam, as crianças que erram vão saindo da brincadeira, porém, algumas insistem em continuar, mas a professora pede que saiam. No final ela pede palmas para o menino que ganhou. diário de campo 15/09/2006

Dentro da rotina, a brincadeira mais utilizada pela professora foi o “morto - vivo”, que consiste em as crianças ficarem paradas, apenas levantando e abaixando ao comando das palavras “morto” e “vivo”. A própria característica da brincadeira é de movimentos controlados, sabe-se que a única possibilidade de movimento

apresentada no desenrolar desta é o levantar-se e abaixar-se. Além disso, apesar dessa ser a brincadeira mais utilizada pela professora, ainda foram propostas outras como “batata - quente” e “estátua”, mas todas essas com característica de movimentação controlada.

Ainda existiam aquelas brincadeiras inventadas pela professora com caráter mais explícito de controle do movimento das crianças:

As crianças voltam em fila para a sala, a professora diz que podem pegar brinquedo, ao perceber o barulho que as crianças estão
fazendo ela diz: “vamos fazer um concurso pra saber quem fala mais baixo: os meninos ou as meninas” as crianças olham em silêncio e balançam a cabeça afirmando que sim. As crianças permanecem sentadas, porém conversam bastante, a professora aproveita o momento para colar bilhetes nos cadernos, percebendo o barulho ela diz está 1x0 para as meninas, porque os meninos estão falando muito alto, o que causa um silêncio  momentâneo, as meninas dizem “ehehehehe”.
Maria Vitória diz às colegas de sua mesa

“vamos falar baixo, senão não vamos ganhar”. diário de campo 30/10/2006

Na situação descrita, a brincadeira serviu simplesmente como uma forma de controle das crianças, motivada pelo clima de competitividade entre meninos e meninas. De acordo com a

atitude da menina, que diz para suas amigas continuarem falando baixo para elas ganharem, percebemos como o controle se efetiva e constrói situações em que as crianças aprendem a se controlar e controlar os outros. Alguns dias depois que a professora havia proposto esta brincadeira, a mesma menina citada propõe à professora - que no momento pede para que as crianças façam silêncio – que realize a brincadeira novamente:

[...] Logo começa a chover e as crianças têm que voltar a sala, lá a professora pede para falarem baixo, elas pegam brinquedo e sentam no chão. Maria Vitória diz a professora “vamos fazer o concurso de quem fala mais baixo?” A professora pergunta às crianças se elas querem e elas dizem que sim. diário de campo  01/11/

Oliveira (2006, p. 59) afirma que ao analisarmos as práticas corporais na escola, podemos aferir que existe um constante esforço, por parte de todos que a compõe, de controlar a  ação dos corpos, mostrando que há uma negação do mesmo:

[...] Negação esta que se manifesta mediante um controle intenso sobre toda e qualquer ação, seja de professores, alunos e funcionários, alimentado por certa previsibilidade daquilo que

ocorre, ou daquilo que pode ocorrer, em termos corporais, no interior da escola. Essa negação é fomentada por um poderoso código coercivo de punições, que é ensinado ao individuo logo que
ele inicia sua vida estudantil. 

Dentro desta análise das brincadeiras não poderíamos deixar de destacar uma situação em que a divisão das crianças no espaço foi

realizada com a finalidade de controlá-las. Trata – se de um dia em que a professora traz para a sala um cavalinho de balanço, este brinquedo causou euforia nas crianças, já que ele não

estava sempre à disposição da turma:

A professora traz para a sala o cavalinho que estava no refeitório, todas as crianças vão à direção dele, que foi colocado do lado de fora, em frente às salas, a professora pede para as crianças entrarem para organizar quem irá brincar no cavalinho. Pede para todas sentarem, ela marca na lousa o nome das crianças, na ordem em que elas escolhem umas as outras, diz que sairá um de cada vez para brincar, seguindo a ordem estabelecida. As crianças que ficaram na sala olham a criança que está lá fora brincando sozinha no cavalinho. Duas meninas saem e a professora pede para entrarem, porque tem que seguir a ordem da lousa. Diz para ficarem brincando dentro da sala e quando a criança que estiver no cavalinho cansar de brincar, ela vem e chama o próximo. diário de campo 15/09/2006

Apesar da tentativa de controle das crianças, estas só “obedeceram” nos momentos em que a professora manteve uma vigilância direta sobre o ato delas. Durante todo o “episódio” as crianças saíam para brincarem juntas no cavalinho, a brincadeira só era interrompida quando a professora percebia que as crianças não estavam seguindo a ordem proposta por ela.
Neste momento, o olhar da professora fez-se necessário para que o controle sobre os corpos das crianças se efetivasse, assim, nos momentos em que as crianças sabiam que não estavam  sendo vigiadas, no caso quando a professora estava ocupada com a colagem de bilhetes nos cadernos, o controle dos seus corpos não foi atingido de maneira eficiente, mostrando que as crianças também resistem a disciplina corporal que lhes é imposta, e neste dia apesar da tentativa, elas estabeleceram relações diferentes

daquelas que foram estruturadas pela professora.



Considerações finais



Na análise do corpo e movimento da criança dentro da rotina estudada podemos perceber que há uma organização espacial, bem como uma determinação normativa que tenta controlar o  movimento das crianças dentro da rotina. Parece estar enraizado a concepção de que movimento é sinônimo de desordem, para tal, tenta-se colocar o ser criança dentro de um padrão escolar desde
a educação infantil.
Isso não significa que o poder de controle que se dirige às crianças, as atinja de forma passiva, pois, estas também resistem, como pode ser observado nos momentos que elas se abraçam e  empurram nas filas, se movimentam dentro da sala, ou ainda o próprio momento do parque.
Mesmo assim, os esforços dirigem-se em tentar controlar este corpo, com o uso dos castigos e prêmios.
Havia um “esforço” da professora para normalizar as condutas corporais das crianças, inculcando desde cedo que lugar de “bagunça” (movimento e barulho) é só lá fora (no parque) e

não nos outros espaços. Se for ensinado desde cedo à criança que lugar de movimento é lá fora, é isso o que, talvez, ela levará para a escola, e principalmente para aula de educação física, já que as aulas, em sua maioria, ocorrem fora da sala de aula.

Se na educação infantil não deve haver disciplinarização dos conteúdos e da aprendizagem, por que deve haver separação

entre corpo/movimento e mente? Naquele contexto, até mesmo a brincadeira foi usada como forma de controlar o corpo das crianças, já que todas tinham um caráter de movimentos controlados.

Mas, será que realmente controlar o movimento da criança constitui na única forma dela aprender a se organizar e conviver

socialmente com outras crianças? Não seria esta uma forma mais segura para os adultos e não para as crianças?

A titulo de exemplo citamos o caso do uso da fila. Devemos refletir sobre até que ponto ela possibilita que a criança se organize ao invés de ser organizada pelo adulto. Este, por sua vez,  utiliza-se deste artifício para disciplinar ou mesmo castigar criança, como foi observado no contexto estudado.

Pesquisa realizada por Prodócimo; Recco (2008) sobre situações de agressividade no espaço do recreio, constatou que o momento em que as crianças permaneciam em fila, na espera pela entrada e saída do recreio e/ou para receber a merenda, foi um dos momentos em que elas mais apresentavam manifestações agressivas para com seus pares.

A autora constata que em alguns momentos a fila é necessária, como no caso da distribuição da merenda, pois, quem chega primeiro tem o direito de recebê-la primeiro, porém, em outros

momentos, a fila passa de seu uso de cumprimento de direitos para exercer função disciplinadora. De acordo com a autora “O uso

indiscriminado da fila toma do aluno o direito de aprender a se auto-organizar e rouba-lhe a possibilidade de movimentar-se livremente” (PRODÓCIMO; RECCO, 2008, p. 10572).

Não negamos que a organização de rotinas foi uma forma necessária encontrada para exercer uma ação pedagógica dirigida, o que supõe uma intencionalidade para que a criança aprenda,

porém, na educação infantil, o foco deveria ser a criança e, o cumprimento da rotina deve atender as necessidades dela. Assim devemos (re) pensada uma rotina que seja flexível e permita
que a criança aprenda a se organizar, não roubando-lhe o direito de movimentar-se e expressar-se corporalmente.

De acordo com Foucault e o observado em campo, podemos pensar que, o que somos e fazemos não está definido previamente, assim é possível problematizar nossa constituição como sujeitos. Assim, se inculcarmos nas crianças que o movimento atrapalha, talvez fique difícil quebrar a dicotomia corpo/mente existente na escola e também, como constatamos, na educação  infantil.
Se assumirmos a perspectiva que as práticas escolares são  produzidas socialmente, podemos afirmar que elas podem ser repensadas, reestruturadas, experimentando assim, outros
modos de agir e pensar.
Corpo, movimento e educação infantil

Motriz, Rio Claro, v.14, n.3, p.222-232, jul./set. 2008 231


Parte de artigo Corpo e movimento na educação infantil

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1 Comentários

  1. Assunto polêmico, se este estudo fosse feito na escola onde trabalho, tenho certeza que o pesquisador iria ficar preocupado com a segurança das crianças e detalhe: nem parquinho temos.

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