Como surgem as brincadeiras das crianças?
Como surgem as brincadeiras das crianças?
Em síntese, o que a análise e a interpretação históricas revelam é que "por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância; depois dos 3 ou 4 anos, ela se atenuava e desaparecia.
O texto abaixo é um fragmento do artigo "O Adulto, a Criança
e a Brincadeira" , autoria de
Elizabeth Times Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da Universidade Católica de Brasília (UCB). Gabriela Tunes Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB)
Historicamente, o faz-de-conta emerge num momento social específico, quando muda a posição da criança na sociedade.
Elizabeth Times Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da Universidade Católica de Brasília (UCB). Gabriela Tunes Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB)
Historicamente, o faz-de-conta emerge num momento social específico, quando muda a posição da criança na sociedade.
A criança,
evidentemente, sempre fez parte da sociedade mas a sua posição e o seu
estatuto, muda, no curso da história, como aponta Elkonin (1972):
Ariès (1978) apresenta-nos uma série de evidências históricas a respeito dessas mudanças no estatuto da infância na sociedade.
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Imagem sob licença de Mycute Graphics |
Nos primeiros estágios de desenvolvimento da espécie humana,
o elo entre a criança e a sociedade era direto e imediato
- desde os anos mais remotos, as crianças viviam uma
vida em comum com os adultos. O desenvolvimento da criança
no âmbito dessa vida comum era um processo unificado
e integral. A criança constituía uma parte orgânica das
forças produtivas combinadas da sociedade, e sua participa-
ção nesta era limitada apenas pelas suas capacidades físicas.
A medida que os meios de produção e as relações sociais
tornaram-se mais complexos, o elo entre a criança e a sociedade
mudou: tal elo, anteriormente direto, passou a ser
mediado pela educação e normas de criação. (...) No processo
de desenvolvimento social, as funções da educação e
criação tornaram-se, cada vez mais, uma responsabilidade
da família que, por sua vez, constituiu-se como uma
unidade econômica independente. Ao mesmo tempo, os
laços entre a família e a sociedade tornaram-se, cada vez
mais, indiretos. O conjunto de relações caracterizadoras da "criança na sociedade" foi, assim, obscurecido e dissimulado
pelo sistema de relações "criança-família" e, dentro
desta, pelas relações "a criança e o indivíduo adulto"
Ariès (1978) apresenta-nos uma série de evidências históricas a respeito dessas mudanças no estatuto da infância na sociedade.
Afirma que, na sociedade medieval, não existia o sentimento da infância,
sentimento este definido como "consciência da particularidade infantil [...]
particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo
jovem" (p. 156).
Não existia, pois, essa espécie de consciência coletiva do
sentimento de infância, o que não quer dizer que as pessoas não
dedicassem afeição às crianças: "
A maneira de ser das crianças deve ler
sempre parecido encantadora às mães e às amas, mas esse sentimento
pertencia ao vasto domínio dos sentimentos não expressos" (p. 158).
Daí
porque, tão logo a criança tivesse condições de independer dos cuidados
de sua mãe, imergia-se entre os adultos e em suas atividades e deles não
mais se distinguia.
A consciência coletiva acerca da infância, ou o conceito, propriamente dito, de infância desencadeia-se com a emergência de dois sentimentos em relação à criança, que se conjugam nas suas próprias contradições, conforme permite-nos pensar Ariès.
A consciência coletiva acerca da infância, ou o conceito, propriamente dito, de infância desencadeia-se com a emergência de dois sentimentos em relação à criança, que se conjugam nas suas próprias contradições, conforme permite-nos pensar Ariès.
De um lado, o
reconhecimento do prazer provocado pelas maneiras das crianças
pequenas, sentimento esse que ele denomina de "paparicação".
De outro
lado, e em decorrência daquele, a expressão de um desprazer, de uma
irritação e até mesmo de hostilidade, muito bem ilustrada nas palavras de
Montaigne, citadas por Ariès (1978, p. 159):
Tanto a paparicação quanto a irritação eram sentimentos
novos que começaram a surgir ao final do século 16 e, principalmente, no
decorrer do século 17, e é de suas contradições que se passa a entender
como não mais desejável "que as crianças se misturassem com os adultos,
especialmente na mesa - sem dúvida porque essa mistura permitia que
fossem mimadas e se tornassem mal-educadas" (Ariès, 1978, p. 161).
Vale realçar: separar é distinguir; é conceituar.
Não posso conceber essa paixão que faz com que as pessoas
beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda nem
movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela
qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade
que elas fossem alimentadas na minha frente.
É, assim, na separação conceitual e física de um ser
pequeno (criança) de um ser maior (adulto) que, também, começa a
esboçar-se a idéia que hoje temos de jogos e brincadeiras tipicamente
infantis.
Imersa no mundo dos adultos, ainda no início do século 17, a criança participava com vigor de todas as suas atividades: danças, jogos, brincadeiras, festas sazonais coletivas, trabalho, espetáculos musicais, teatro. Não eram apenas espectadores: tinham papéis e lugares importantes definidos.
Imersa no mundo dos adultos, ainda no início do século 17, a criança participava com vigor de todas as suas atividades: danças, jogos, brincadeiras, festas sazonais coletivas, trabalho, espetáculos musicais, teatro. Não eram apenas espectadores: tinham papéis e lugares importantes definidos.
Aquela época, apenas às crianças bem pequeninas
reservava-se alguma especialização nas brincadeiras (por exemplo, o
cavalo de pau, o catavento), o que, por certo, não foi sempre assim
(ibidem).
Para citar alguns exemplos, crianças participavam, ativamente,
junto com os adultos, de brigas de galo, de representações dramáticas;
freqüentavam tavernas e bordéis; apostavam e jogavam a dinheiro (há
registro deste costume de apostar até 1830, em escolas públicas inglesas).
Os adultos, por sua vez, também realizavam, com seus pares ou com
crianças, brincadeiras que, hoje, vemos como puramente infantis:
esconde-esconde, cabra-cega, berlinda, entre inúmeras outras.
Conforme
salienta Ariès (1978), os divertimentos dos adultos não eram menos
infantis que os das crianças, pois eram os mesmos.
Até os brinquedos
construídos como representação, em miniatura, de objetos e pessoas da
vida cotidiana eram tanto destinados aos adultos quanto às crianças.
Não é
outra a origem do que chamamos bibelô e que, hoje, usamos como
elemento de decoração em nossas casas: o bibelô antigo era um brinquedo
destinado a um mesmo corpo social que, na atualidade, decompomos em
criança e adulto.
Em meados do século 20, ainda era possível constatar-se o costume
de se agraciar noivas, já em preparação para o seu casamento, com
bonecas vestidas e enfeitadas de maneira sofisticada. Muitas dessas noivas
carregavam-nas para seus quartos conjugais onde permaneciam por muito
tempo como um elemento decorativo.
Esta prática parece ser a resultante
de um costume que data do século 16, em que as bonecas serviam às
mulheres elegantes como manequim de moda.
Uma curiosidade
interessante para destaque a respeito da boneca é que, nos anos de 1600,
tanto meninas como meninos brincavam com ela.
Como surgem as brincadeiras das crianças?
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Em síntese, o que a análise e a interpretação históricas revelam é que "por volta de 1600, a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância; depois dos 3 ou 4 anos, ela se atenuava e desaparecia.
A partir dessa idade, a criança jogava os mesmos jogos e
participava das mesmas brincadeiras dos adultos, quer entre crianças,
quer misturada aos adultos" (Ariès, 1978, p. 92; grifos do original).
Todavia, com o decorrer do tempo, jogos e brincadeiras, muitas vezes
oriundos da própria corte, vão sendo transformados ou até mesmo
abandonados, deixando-se as crianças, de um modo geral, e adultos de
classes populares como seus repositórios.
Ariès descreve com algum
detalhe a evolução de algumas brincadeiras, especialmente a dos jogos "a
valer" (com apostas em dinheiro), para concluir que:
Do que foi exposto até aqui, importa destacar que, contemporaneamente, o que nos aparece como uma atividade tipicamente infantil, realizada entre crianças ou, individualmente, por uma criança, no passado, foi uma atividade coletiva, desenvolvida por adultos e crianças que constituíam, indistintamente, um único corpo social.
Em cada caso, a mesma evolução se repete monotonamente.
E nos conduz a uma conclusão importante.
Partimos de um estado social em que os mesmos jogos e brincadeiras
eram comuns a todas as idades e a todas as classes.
O fenômeno que se deve sublinhar é o abandono desses jogos
pelos adultos das classes sociais superiores e, simultaneamente,
sua sobrevivência entre o povo e as crianças dessas
classes dominantes. É verdade que na Inglaterra os fidalgos
não abandonaram, como na França, os velhos jogos, mas os
transformaram, e foi sob formas modernas e irreconhecíveis
que esses jogos foram adotados pela burguesia e pelo "esporte"
do século 19.
E notável que a antiga comunidade dos jogos se tenha rompido
ao mesmo tempo entre as crianças e os adultos e entre
o povo e a burguesia. Essa coincidência nos permite entrever
desde já uma relação entre o sentimento da infância e o
sentimento de classe (Ariès, 1978, p. 124).
Do que foi exposto até aqui, importa destacar que, contemporaneamente, o que nos aparece como uma atividade tipicamente infantil, realizada entre crianças ou, individualmente, por uma criança, no passado, foi uma atividade coletiva, desenvolvida por adultos e crianças que constituíam, indistintamente, um único corpo social.
A especialização
ou tipificação das brincadeiras como infantis é, na verdade, uma das
manifestações concretas da emergência e evolução histórica do conceito
de infância.
Daí porque estudar a atividade de brincar, além de permitir
alguma compreensão sobre a transição do biológico para o cultural, como
já se disse, conduz-nos, também, a um entendimento sobre processos de
mudança e transformação das nossas formas culturais de comportamento.
Como tal, a atividade de brincar aparece diante de nossos olhos como um
microcosmo da cultura, uma unidade de análise e interpretação históricas,
que nos possibilita desvendar, pelos vestígios que contém, formas arcaicas
de nossos modos de pensar e agir.
LEIA AGORA ARTIGO COMPLETO NO LIVRO de DOMÍNIO PÚBLICO - Educação infantil: a creche, um bom começo
LEIA AGORA ARTIGO COMPLETO NO LIVRO de DOMÍNIO PÚBLICO - Educação infantil: a creche, um bom começo
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